O sol que nos alimenta – Walter Steenbock
Devemos ter fé na humanidade?
Devemos ter fé na humanidade?
Se eu fosse você, respirava antes de responder...
Era um domingo com cara de início de outono o dia em que, caminhando pelas ruas do bairro, me deparei com uma entrada, quase secreta, na rua Natingui, Zona Oeste de São Paulo. A entrada era convidativa demais, com uma bougainville cor de rosa bem florida, e eu não hesitei em entrar.
Me deparei com uma paisagem um tanto atípica na cidade. Um barulhinho de riacho, grafites nas paredes e algumas mudas recém-plantadas. Entre uma muda e outra, dei de cara com uma placa escrita a mão que ficou me perturbando por algumas horas.
Ela me questionava o seguinte: E se todas as pessoas saíssem de São Paulo... será que os rios voltariam a ser limpos?
E agora lhe faço um convite, antes de continuar a leitura... pense um pouco: qual a primeira resposta vem a sua mente ao ler essa pergunta?
“E se todas as pessoas saíssem de São Paulo... será que os rios voltariam a ser limpos?”
Quando li o cartaz minha primeira reação foi responder: "SIM-COM-TO-DA-CER-TEEEEE-ZA!"
Eu segui caminhando, como se aquela minha resposta não tivesse me perturbado. E me aliviei ao perceber que aquele caminho me levaria até a Horta das Corujas, meu santuário em dias de confusão mental. Mas, dessa vez, mesmo entre flores, temperos e borboletas, aquela questão não parava de ecoar nos meus pensamentos.
A pergunta me rodeava, junto das abelhas, imersa naquele pequeno pedaço de agrofloresta no meio da maior cidade da América Latina – uma cidade cheia de contradições. O mesmo território que abrigou pessoas que soterraram seus rios e poluíram suas águas, abriga também pessoas que construíram e mantêm uma horta comunitária, voluntariamente, nos moldes da agroecologia.
“Será que se todos os humanos saíssem das grandes cidades, os rios ficariam mais limpos?”
A frase continuava a ecoar… Não estava nem um pouco feliz com a minha primeira resposta reativa. Lembrei de um dos ensinamentos de Daniel Wahl, em Design de Culturas Regenerativas. Ele abre o livro deixando claro que é hora de perdermos mais tempo nas perguntas, do que nas respostas. "Perguntas complexas não se respondem com pensamentos lineares e simplistas". Eu me recordei.
Foi então que um trovão me assustou e ajudou a cair uma ficha daquelas bem pesadas, sabe?
Talvez, eu seja tão contraditória quanto a cidade de São Paulo. Sim, porque eu adoro dizer que ainda tenho fé na humanidade e me entristeço quando ouço alguém dizer que as pessoas são um câncer planetário ou que o planeta ficaria melhor sem a nossa presença. E, talvez, você já saiba o quanto é comum esse tipo de pensamento e falas, mesmo em círculos de ativistas. E lá estava eu, repetindo o padrão de pensamento que condeno.
"Não! Eu não posso continuar achando que o problema é o ser humano como essência." Eu respondi para mim mesma.
Ainda que eu saiba que fomos nós, espécie humana, que nos colocamos nestes apuros de águas, ar e terras poluídas, é simplista demais dizer que a culpa é do ser humano e com isso esperar a hora da extinção da nossa espécie chegar.
TORNANDO O PENSAMENTO SIMPLISTA EM ALGO MAIS COMPLEXO
É simplista e nada justo com as gerações que virão depois de nós. Pode não parecer, mas esse tipo de pensamento nos coloca num lugar "confortável" de não-ação. De fato, a Terra não precisa de nós para se regenerar, mas se todos somos partes conectadas dessa Teia da Vida, alguma função, que não seja a destruição, nós temos, não?
Me lembrei do papo que tive com o Walter Steenbock – engenheiro agrônomo, escritor e pesquisador em sistemas agroflorestais –, em que ele me disse que o que precisávamos fazer era voltar a SER NATUREZA.
"Precisamos voltar a ser natureza. Qualquer ser vivo na natureza deixa o ambiente melhor do que quando ele chegou. Melhor do ponto de vista de mais diversidade, mais abundância, mais relações, mais homeostase, mais equilíbrio… Se a gente conseguisse ser igual a uma amoeba ou baleia, nos perguntaríamos todos os dias: como é que eu posso deixar esse ambiente melhor para o todo?"
Para deixar a reflexão ainda mais complexa, acrescento mais uma pergunta para o caldeirão.
Afirmar que os rios voltariam a ser limpos, caso a sociedade se mudasse para o campo ou para Marte, implica dizer que chegando nestes outros territórios também poluiríamos novos rios, devastaríamos novas terras?
Eu não duvido que isso pudesse acontecer, mas talvez a culpa não seja da nossa essência enquanto seres humanos e sim da forma como estamos escolhendo viver. Esse tipo de pensamento implica dizer que a forma de humanidade construída no mundo ocidental e capitalista é a única forma vigente de sociedade. E não é. Seria negar a existência de outras formas de organizações, formas essas que, ao contrário da sociedade ocidental, vivem em harmonia com toda Teia da Vida.
Imagina se seres humanos, com outros modos de vida (como os indígenas, por exemplo), ocupassem as grandes cidades? Será que veríamos mais aves no céu e peixes nos rios?
Walter me convidou a aprender a ser natural, como as comunidades quilombolas e indígenas, que respeitam e contribuem com o Todo por uma sabedoria intrínseca e ancestral, de quem nunca deixou de ser natureza.
RECUPERANDO A FÉ NA HUMANIDADE
Por que a humanidade deve continuar a existir? Essa é uma das perguntas provocativas que Daniel Wahl busca responder em seu livro. E como a obra de Daniel me ensinou a passar mais horas com as perguntas do que com a respostas, não vou respondê-la e sim trazer mais uma questão para pensarmos juntos:
Será que é mais fácil esperar a nossa extinção do que imaginar outros modos de vidas possíveis, em que os seres humanos possam usar sua consciência auto-reflexiva para participar da dança cósmica da vida de maneira harmoniosa?
Talvez seja mais fácil. Mas eu prefiro acreditar que não. Eu escolhi – e preciso escolher todos os dias – acreditar que é possível imaginarmos e inventarmos novas formas de Viver. Mas viver com V maiúsculo! Nada de buscar soluções simplistas para continuarmos a sobreviver neste planeta.
"Dentro do capitalismo não há solução para a vida; fora do capitalismo há incerteza, mas tudo é possibilidade. Nada pode ser pior que a certeza da extinção. É tempo de inventar, é tempo de ser livre, é tempo de viver bem."
– Ana Esther Ceceña [em O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos, Alberto Acosta, Elefante Editora]
E COMO SEGUIR DIANTE DE TANTAS INCERTEZAS?
Joanna Macy e Chris Johnstone trazem um caminho interessante para isso no livro Esperança Ativa: Como Encarar O Caos Em Que Vivemos Sem Enlouquecer. Primeiro, os autores mostram o quanto é difícil sustentar a crença de que aquilo que esperamos que aconteça é possível quando estamos envolvidos em causas que parecem retroceder.
Mas é doloroso continuarmos na luta por mudanças, mantendo essa visão de incapacidade. Por isso, nestes momentos de desesperanças, eles nos convidam a olhar para fatos históricos de mudança, olhar para as nossas próprias experiências de perseverança e perceber essa "Grande Virada" de ação e pensamento acontecendo através de nós.
Depois, eles nos convidam a olhar para a incerteza de uma outra forma, já que a incerteza pode ser muito paralisante se decidirmos agir apenas quando tivermos clareza dos resultados. Eles citam as ações que combatem a mudança climática, como exemplo. Mesmo com muitos esforços, pode ser que ainda não sejam suficientes e que passaremos por um ponto de inflexão em um caminho sem volta.
Mas a incerteza não pode nos paralisar. Vai que dá certo e que as gerações futuras possam desfrutar de um ambiente em harmonia?
Os autores refletem sobre como a incerteza pode nos motivar:
"A vida, em sua riqueza e mistério, nunca oferece garantias de sucesso. Nós não deixamos isso nos paralisar. Muito pelo contrário, nossa consciência de que o resultado é incerto nos motiva a nos prepararmos. O otimismo complacente ou o pessimismo resignado não têm o poder de nos motivar. (...) O que nos impulsiona a virar a página quando estamos lendo um livro de ficção? É o nosso não saber.”
Pois bem… da próxima vez que eu der de cara para esse cartaz, eu vou respirar e responder:
"Não sei… só sei que vou seguir o conselho do Walter e me perguntar todo dia de manhã: Como posso deixar o espaço em que vivo melhor HOJE?"
Como diz Lenine, "e a gente ainda insiste em ter alguma confiança num futuro que ainda está por vir", insistimos, seguimos e agimos!
Vamos?
----
"Os mundos novos devem ser vividos antes de serem explicados"
– Alejo Carpentier
O reencontro entre a Águia e o Condor – Leonardo Boff
O reencontro entre a Águia e o Condor – Leonardo Boff
O planeta Terra, devido à sistemática agressão nos últimos séculos, está num franco e perigoso declínio. A intrusão do Covid-19 afetando diretamente todo o planeta e exclusivamente a espécie humana é um entre os severos sinais de que a Terra viva nos está enviando: nosso modo de vida é demasiadamente destrutivo levando à morte a milhões de seres humanos e a seres da natureza.
Temos que mudar nosso modo de produzir, de consumir e de morar na única Casa Comum, caso contrário podemos conhecer um armagedon ecológico-social. Curiosamente, na contramão desse processo que alguns o veem como a inauguração de uma nova era geológica – o antropoceno e o necroceno quer dizer, a sistemática destruição de vidas perpetradas pelo próprio ser humano, irrompem os Povos Originários, portadores de uma nova consciência e de uma vitalidade, reprimida por séculos.
Estão se refazendo biologicamente e surgindo como sujeitos históricos. Sentem-se tão unidos a natureza e a Mãe Terra que defendendo-as estão defendendo a si próprios. Fazem-se nossos mestres e doutores.
Foi grande o equívoco dos invasores europeus de chamá-los de “índios” como se fossem habitantes de uma região da Índia que todos buscavam. Eles, na verdade, se chamavam por vários nomes: Tawantinsuyo, Anauhuac, Pindorama entre outros. Prevaleceu o nome de Abya Yala dada pelo povo Kuna do norte da Colômbia e do Panamá que significava “terra madura, terra viva, terra que floresce”.
Eram povos com seus nomes como taínos, tikunas, zapotecas, astecas, maias, olmecas, toltecas, mexicas, aimaras,incas quíchuas tapajós, tupis, guaranis, mapuches e centenas de outros. A adoção do nome comum Abya Yala faz parte da construção de uma identidade comum, na diversidade de suas culturas e expressão das articulações que os unem num imenso movimento que vai do norte o sul do continente americano.
Em 2007 criaram a Cúpula dos Povos de Abya Yala.
Mas sobre eles pesa uma vasta sombra que foi o extermínio infligido pelos invasores europeus. Ocorreu um dos maiores genocídios da história. Foram mortos por guerras de extermínio ou por doenças trazidas pelos brancos contra as quais não possuíam imunidade, por trabalhos forçados e mestiçagem forçada, cerca de 70 milhões de representantes destes povos.
Os dados mais seguros foram levantados pela socióloga e educadora Moema Viezzer e pelo sociólogo e historiador canadense radicado no Brasil Marcelo Grondin. O livro, impressionante, com prefácio de Ailton Krenak leva como título Abya Yala! Genocídio, Resistência e Sobrevivência dos Povos Originários das Américas (Bambual Editora, Rio de Janeiro 2021). Recolhem os dados do genocídio das duas Américas. Demos um pequeno resumo:
No Caribe em 1492 quando chegaram os colonizadores, havia quatro milhões de indígenas. Anos após não havia mais nenhum. Todos foram mortos especialmente no Haiti.
No México em 1500 havia 25 milhões de indígenas (Astecas, toltecas e outros) depois de 70 anos restaram apenas dois milhões.
Nos Andes existiam em 1532 15 milhões de indígenas, em poucos anos restou apenas um milhão.
Na América Central em 1492 na Guatemala, Honduras, Belize, Nicarágua, El Salvador, Costa rica e Panamá havia entre 5,6-13 milhões de indígenas, dos quais 90% foram mortos.
Na Argentina, no Chile, na Colômbia e no Paraguai morreram em média, em alguns países mais em outros menos, cerca cerca de um milhão de indígenas.
Nas Antilhas menores como nas Bahamas, Barbados. Curaçao, Granada, Guadalupe, Trinidad- Tobago e Ilhas Virgens conheceram o mesmo extermínio quase total.
No Brasil, quando os portugueses aportaram nestas terras, havia cerca de 6 milhões de Povos Originários de dezenas de etnias com suas línguas. O desencontro violento os reduziu a menos de um milhão. Hoje, infelizmente, devido ao descuido por parte das autoridades, esse processo de morte continua, vítimas do coronavírus.
Um sábio da nação yanomami, o pajé Davi Kopenawa Yanomamy relata no livro A Queda do Céu o que os xamãs de seu povo estão entrevendo:
"A corrida da humanidade está rumando na direção de seu fim.
Nos Estados Unidos da América viviam em 1607 cerca de 18 milhões
de povos originários e tempos depois sobreviveram apenas dois
milhões."
No Canadá havia em 1492 dois milhões de habitantes originários e em 1933 se contavam apenas 120 mil.
O livro não narra apenas a incomensurável tragédia, mas especialmente as resistências e modernamente as várias cúpulas organizadas entre esses Povos Originários, do sul e do norte das Américas.
Com isso se reforçarem mutuamente, resgatam a sabedoria ancestral dos xamãs, as tradições e as memórias.
Uma lenda-profecia expressa o reencontro desses povos: aquela entre a Águia, representando a América do Norte e o Condor a América do Sul.
Ambos foram gerados pelo Sol e pela Lua. Viviam felizes voando juntos. Mas o destino os separou. A Águia dominou os espaços e quase levou ao extermínio o Condor.
No entanto, quis esse mesmo destino que a partir da década de 1990, ao se iniciarem as grandes cúpulas entre os distintos Povos Originários, do sul e do norte, o Condor e a Águia se reencontraram e começaram a voar juntos. Do amor de ambos, nasceu o Quetzal da América Central, uma das mais belas aves da natureza, ave da cosmovisão maia que expressa a união do coração com a mente, da arte com a ciência, do masculino com o feminino.
É o começo do novo tempo, da grande reconciliação dos seres humanos entre si, como irmãos e irmãs, cuidadores na natureza, unidos por um mesmo coração pulsante e habitando na mesma e generosa Pachamama, a Mãe Terra.
Quem sabe, no meio das tribulações do tempo presente em que nossa cultura encontrou seus limites intransponíveis e se sente urgida a mudar de rumo, esta profecia possa ser a antecipação de um fim bom para todos nós. Ainda voaremos juntos, a Águia do Norte com o Condor do Sul sob a luz benfazeja do Sol que nos mostrará o melhor caminho.
Leonardo Boff escreveu O Casamento entre o Céu e a Terra: contos dos povos indígenas do Brasil, Mar de Ideias, Rio de Janeiro 2014.