Devemos ter fé na humanidade?

Se eu fosse você, respirava antes de responder…

Era um domingo com cara de início de outono o dia em que, caminhando pelas ruas do bairro, me deparei com uma entrada, quase secreta, na rua Natingui, Zona Oeste de São Paulo. A entrada era convidativa demais, com uma bougainville cor de rosa bem florida, e eu não hesitei em entrar.

Me deparei com uma paisagem um tanto atípica na cidade. Um barulhinho de riacho, grafites nas paredes e algumas mudas recém-plantadas. Entre uma muda e outra, dei de cara com uma placa escrita a mão que ficou me perturbando por algumas horas.

Ela me questionava o seguinte: E se todas as pessoas saíssem de São Paulo… será que os rios voltariam a ser limpos?

E agora lhe faço um convite, antes de continuar a leitura… pense um pouco: qual a primeira resposta vem a sua mente ao ler essa pergunta?

“E se todas as pessoas saíssem de São Paulo… será que os rios voltariam a ser limpos?”

Quando li o cartaz minha primeira reação foi responder: “SIM-COM-TO-DA-CER-TEEEEE-ZA!”

Eu segui caminhando, como se aquela minha resposta não tivesse me perturbado. E me aliviei ao perceber que aquele caminho me levaria até a Horta das Corujas, meu santuário em dias de confusão mental. Mas, dessa vez, mesmo entre flores, temperos e borboletas, aquela questão não parava de ecoar nos meus pensamentos. 

A pergunta me rodeava, junto das abelhas, imersa naquele pequeno pedaço de agrofloresta no meio da maior cidade da América Latina – uma cidade cheia de contradições. O mesmo território que abrigou pessoas que soterraram seus rios e poluíram suas águas, abriga também pessoas que construíram e mantêm uma horta comunitária, voluntariamente, nos moldes da agroecologia.

“Será que se todos os humanos saíssem das grandes cidades, os rios ficariam mais limpos?” 

A frase continuava a ecoar… Não estava nem um pouco feliz com a minha primeira resposta reativa. Lembrei de um dos ensinamentos de Daniel Wahl, em Design de Culturas Regenerativas. Ele abre o livro deixando claro que é hora de perdermos mais tempo nas perguntas, do que nas respostas. “Perguntas complexas não se respondem com pensamentos lineares e simplistas”. Eu me recordei.

Foi então que um trovão me assustou e ajudou a cair uma ficha daquelas bem pesadas, sabe?

Talvez, eu seja tão contraditória quanto a cidade de São Paulo. Sim, porque eu adoro dizer que ainda tenho fé na humanidade e me entristeço quando ouço alguém dizer que as pessoas são um câncer planetário ou que o planeta ficaria melhor sem a nossa presença. E, talvez, você já saiba o quanto é comum esse tipo de pensamento e falas, mesmo em círculos de ativistas. E lá estava eu, repetindo o padrão de pensamento que condeno.

“Não! Eu não posso continuar achando que o problema é o ser humano como essência.” Eu respondi para mim mesma.

Ainda que eu saiba que fomos nós, espécie humana, que nos colocamos nestes apuros de águas, ar e terras poluídas, é simplista demais dizer que a culpa é do ser humano e  com isso esperar a hora da extinção da nossa espécie chegar.

TORNANDO O PENSAMENTO SIMPLISTA EM ALGO MAIS COMPLEXO

É simplista e nada justo com as gerações que virão depois de nós. Pode não parecer, mas esse tipo de pensamento nos coloca num lugar “confortável”  de não-ação. De fato, a Terra não precisa de nós para se regenerar, mas se todos somos partes conectadas dessa Teia da Vida, alguma função, que não seja a destruição, nós temos, não? 

Me lembrei do papo que tive com o Walter Steenbock – engenheiro agrônomo, escritor e pesquisador em sistemas agroflorestais –, em que ele me disse que o que precisávamos fazer era voltar a SER NATUREZA. 

“Precisamos voltar a ser natureza. Qualquer ser vivo na natureza deixa o ambiente melhor do que quando ele chegou. Melhor do ponto de vista de mais diversidade, mais abundância, mais relações, mais homeostase, mais equilíbrio… Se a gente conseguisse ser igual a uma amoeba ou baleia, nos perguntaríamos todos os dias: como é que eu posso deixar esse ambiente melhor para o todo?”

Para deixar a reflexão ainda mais complexa, acrescento mais uma pergunta para o caldeirão.

Afirmar que os rios voltariam a ser limpos, caso a sociedade se mudasse para o campo ou para Marte, implica dizer que chegando nestes outros territórios também poluiríamos novos rios, devastaríamos novas terras?

Eu não duvido que isso pudesse acontecer, mas talvez a culpa não seja da nossa essência enquanto seres humanos e sim da forma como estamos escolhendo viver. Esse tipo de pensamento implica dizer que a forma de humanidade construída no mundo ocidental e capitalista é a única forma vigente de sociedade. E não é. Seria negar a existência de outras formas de organizações, formas essas que, ao contrário da sociedade ocidental, vivem em harmonia com toda Teia da Vida.

Imagina se seres humanos, com outros modos de vida (como os indígenas, por exemplo), ocupassem as grandes cidades? Será que veríamos mais aves no céu e peixes nos rios?

Walter me convidou a aprender a ser natural, como as comunidades quilombolas e indígenas, que respeitam e contribuem com o Todo por uma sabedoria intrínseca e ancestral, de quem nunca deixou de ser natureza.

RECUPERANDO A FÉ NA HUMANIDADE

Por que a humanidade deve continuar a existir? Essa é uma das perguntas provocativas que Daniel Wahl busca responder em seu livro. E como a obra de Daniel me ensinou a passar mais horas com as perguntas do que com a respostas, não vou respondê-la e sim trazer mais uma questão para pensarmos juntos:

Será que é mais fácil esperar a nossa extinção do que imaginar outros modos de vidas possíveis, em que os seres humanos possam usar sua consciência auto-reflexiva para participar da dança cósmica da vida de maneira harmoniosa?

Talvez seja mais fácil. Mas eu prefiro acreditar que não. Eu escolhi – e preciso escolher todos os dias – acreditar que é possível imaginarmos e inventarmos novas formas de Viver.  Mas viver com V maiúsculo! Nada de buscar soluções simplistas para continuarmos a sobreviver neste planeta.

“Dentro do capitalismo não há solução para a vida; fora do capitalismo há incerteza, mas tudo é possibilidade. Nada pode ser pior que a certeza da extinção. É tempo de inventar, é tempo de ser livre, é tempo de viver bem.

 – Ana Esther Ceceña [em O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos, Alberto Acosta, Elefante Editora]

E COMO SEGUIR DIANTE DE TANTAS INCERTEZAS?

Joanna Macy e Chris Johnstone trazem um caminho interessante para isso no livro Esperança Ativa: Como Encarar O Caos Em Que Vivemos Sem Enlouquecer. Primeiro, os autores mostram o quanto é difícil sustentar a crença de que aquilo que esperamos que aconteça é possível quando estamos envolvidos em causas que parecem retroceder. 

Mas é doloroso continuarmos na luta por mudanças, mantendo essa visão de incapacidade. Por isso, nestes momentos de desesperanças, eles nos convidam a olhar para fatos históricos de mudança, olhar para as nossas próprias experiências de perseverança e perceber essa “Grande Virada” de ação e pensamento acontecendo através de nós.

Depois, eles nos convidam a olhar para a incerteza de uma outra forma, já que a incerteza pode ser muito paralisante se decidirmos agir apenas quando tivermos clareza dos resultados. Eles citam as ações que combatem a mudança climática, como exemplo. Mesmo com muitos esforços, pode ser que ainda não sejam suficientes e que passaremos por um  ponto de inflexão em um caminho sem volta.

Mas a  incerteza não pode nos paralisar. Vai que dá certo e que as gerações futuras possam desfrutar de um ambiente em harmonia?

Os autores refletem sobre como a incerteza pode nos motivar:

“A vida, em sua riqueza e mistério, nunca oferece garantias de sucesso. Nós não deixamos isso nos paralisar. Muito pelo contrário, nossa consciência de que o resultado é incerto nos motiva a nos prepararmos. O otimismo complacente ou o pessimismo resignado não têm o poder de nos motivar. (…) O que nos impulsiona a virar a página quando estamos lendo um livro de ficção? É o nosso não saber.”

Pois bem… da próxima vez que eu der de cara para esse cartaz, eu vou respirar e responder:

“Não sei… só sei que vou seguir o conselho do Walter e me perguntar todo dia de manhã: Como posso deixar o espaço em que vivo melhor HOJE?”

Como diz Lenine, “e a gente ainda insiste em ter alguma confiança num futuro que ainda está por vir”, insistimos, seguimos e agimos!

Vamos?

—-

“Os mundos novos devem ser vividos antes de serem explicados”

– Alejo Carpentier